LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Historia Do Corpo Na Idade Media, Uma. Editora Record, 2006.
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O
Combate do Carnaval e da Quaresma. Pieter Bruegel, 1559.
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Prefácio
Descrição:
Justificativa de por que trabalhar a
história do corpo.
“Por que o corpo na Idade Média? Porque
ele constitui uma das grandes lacunas da história, um grande esquecimento do
historiador. A história tradicional era, de fato, desencarnada. Interessava-se
pelos homens e, secundariamente, pelas mulheres. Mas quase sempre sem corpo”. P.
9
Teses:
A história do corpo é parte essencial do empreendimento
dos Annales de se construir uma história total. P. 10-11
Teses
centrais:
“A dinâmica da sociedade e da civilização
medievais resulta de tensões: entre Deus e o homem, entre o homem e a mulher,
entre a cidade e o campo, entre o alto e o baixo, entre a riqueza e a pobreza,
entre a razão e a fé, entre a violência e a paz”. P. 11
“De um lado, o corpo é desprezado,
condenado, humilhado”. P. 11
. Penitência, pecado original, trabalho,
nudez.
“Por outro lado, o corpo é glorificado no
cristianismo medieval”. P. 12
. Encarnação e ressureição de Jesus.
“O corpo cristão medieval é de parte a
parte atravessado por essa tensão, esse vaivém, essa oscilação entre a
repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração”. P. 13
Introdução
Descrição:
Panorama historiográfico de como o corpo
foi esquecido na história, mostrando as exceções.
Justificativa:
“[...] o desvio pela história do corpo na Idade
Média pode permitir compreender um pouco melhor nosso tempo, tanto por suas
convergências surpreendentes como por suas irredutíveis divergências”. P. 32
1. Quaresma e Carnaval: uma dinâmica do Ocidente
Descrição:
Demonstrar a
tensão que perpassa o corpo: Quaresma e Carnaval, santidade e impiedade, jejum
e gula, choro e riso, penitência e prazer.
“Na Idade média o
corpo é [...] o lugar de um paradoxo. Por um lado, o cristianismo não cessa de
reprimi-lo. ‘O corpo é a abominável roupa da alma”, diz o papa Gregório, o
Grande. Por outro, ele é glorificado, sobretudo por meio do corpo padecente de
Cristo, sacralizado na Igreja, corpo místico de Cristo. “O corpo é o
tabernáculo do Espírito Santo”, diz Paulo. A humanidade cristã repousa tanto
sobre o pecado original [...] quanto sobre a encarnação: Cristo se fez homem
para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas populares, o corpo é
contido pela ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado, mas
resiste à sua repressão”. P. 35
Tese
Central:
“A vida cotidiana
dos homens da Idade Média oscila entre a Quaresma e o carnaval”. P. 35
A GRANDE RENÚNCIA
Descrição:
A renúncia ao
corpo presente na sociedade medieval que resultava em restrições a ele. A
renúncia ao prazer e o ideal ascético.
Desaparecimento do
esporte, do teatro. Mulher diabolizada; sexualidade controlado, trabalho manual
depreciado; homossexualidade condenada; riso e gesticulação reprovados... p. 37
“O culto do corpo
da Antiguidade cede lugar, na Idade Média, a uma derrocada do corpo na vida
social” p. 37
Ideal da vida
monástica: repressão do prazer, principalmente do corporal.
- O
tabu do esperma e do sangue
Materialização da “repugnância
em relação aos fluídos corporais: o esperma e o sangue”. Entretanto o paradoxo:
o Cristianismo é estabelecido com base no sangue de Cristo.
- A
sexualidade, ápice da depreciação
“Assim, é possível afirmar que o corpo
sexuado da Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo
carnal, amplamente reprimidos. O próprio casamento cristão [...] será uma
tentativa de remediar a concupiscência. A cópula só é compreendida e tolerada
com a única finalidade de procriar”. P. 41
“Toda tentativa contraceptiva é pecado
mortal para os teólogos. A sodomia é uma abominação. A homossexualidade [...]
torna-se [...] uma perversão por vezes associada ao canibalismo”. P. 42
“Estabelece-se de uma hierarquia entre os
comportamentos sexuais lícitos. No mais alto grau está a virgindade, que em sua
prática, é denominada castidade. Depois vem a castidade na viuvez e, enfim, a
castidade no interior do casamento”. P. 43
Abstinência sexual nos dias santos, sendo
o sexo permitido durante 180 ou 185 dias no ano.
- Teoria e Prática
Descrição:
Mostrar o distanciamento entre o discurso e a
prática dos medievais quanto as proibições sexuais.
“A distinção social determina as práticas
corporais e a sequência das proibições”. P. 45
“As aventuras extraconjugais brilham nas
grandes famílias nobres. Do lado dos ricos, a poligamia é praticada e, na verdade,
admitida. Do lado dos pobres, a monogamia instituída pela Igreja é mais
respeitada. Quanto à abstinência, ela é, como lembra Jacques Rossiaud, ‘uma
virtude muito rara’ e ‘reservada a uma elite clerical, já que a maior parte dos
clérigos seculares vive em regime de concubinato, quando não são abertamente
casados”. P. 45
- Raízes
da Repressão: a Antiguidade Tardia
Descrição:
traçar as origens da repressão a sexualidade.
Segundo Paul Veyne, tal mudança ocorreu nos últimos anos do século II da
era cristã, entre 180-200. Prática essa que foi impulsionada pelo cristianismo
dos primeiros séculos e posterior. P. 47,49.
Essa “recusa da sexualidade e a ‘renúncia
a carne’, se produziu, de início, sob o Império Romano, no interior daquilo que
se chamou paganismo”. P. 47
- O cristianismo, operador da grande reviravolta
Descrição: Demonstrar que as várias interpretações bíblicas
levaram o pecado original ser interpretado como um pecado sexual.
“[...] há várias premissas de uma diabolização
do sexo e da mulher em Paulo”. P. 49
- A
mulher subordinada
Descrição:
Como
a Idade Média justifica a subordinação feminina.
“Segunda e secundária, a mulher não é o
equilibro nem a completude do homem”. [...] “'o homem está em cima, a mulher
embaixo’, escreve Christian Klapisch-Zuber”. P. 52
A mulher é criada a partir da costela de
Adão. “Da criação dos corpos nasce, portanto, a desigualdade original da mulher”.
P. 53
“‘Essa Idade Média é masculina,
decididamente’, escreve Georges Duby. ‘Pois todos os discursos que chegam até
mim e sobre os quais me informo são feitos por homens, convencidos da
superioridade de seu sexo. [...] Eles têm medo delas e, para se afirmarem,
desprezam-nas’”. P. 54-55
“‘O homem se dirige à mulher como se
dirige à latrina: para satisfazer uma necessidade’, resumo Jacques Rossiaud”. P.
55
- Estigmas e flagelação
Descrição:
Como os estigmas e flagelação encontram, ou não, apreço na Idade Média.
“o dolorismo conhecerá, por sua
identificação com o Cristo sofredor, uma breve e relativa expansão na Idade média
por meio dos estigmas e das flagelações”. P. 55-56
“Os estigmas são as marcas das feridas de
Cristo durante a Paixão”. E, “tende, a partir do século XIII, a se tornar um
selo de santidade, um signo da efusão do Espírito Santo”. P. 56
“Tendo também como pano de fundo a
invocação da Paixão de Cristo, a flagelação na Idade Média quase sempre encontra
hostilidade por parte da Igreja.” P. 56
“Manifestações leigas e populares, os movimentos
de flagelação eram uma espécie de peregrinação executada carregando-se uma cruz
ou um estandarte, pés descalços, o corpo semidesnudo, em meio a aclamações e
cantos sagrados. Essas manifestações eram acompanhadas de um rito penitencial
por excelência, a autoflagelação”. P. 56-57
“Esses rituais produziam-se sobretudo em
períodos de crise social e religiosa”. P. 57
- O magro e o gordo
Descrição:
A renúncia ao corpo perpassa, além da sexualidade e o sofrimento voluntário, a
alimentação dos medievais.
“a luxúria passa a ser cada vez mais
associada à gula. [...] Pecados da carne e pecados da boca caminham de mãos
dadas”. P. 57
“A abstinência e o jejum dão o ritmo,
portanto, do ‘homem medieval’”. P. 58
“Gordo oposto ao magro, Carnaval que se
empanturra contra Quaresma que jejua”. P. 59 Essa é a tensão que perpassa o
período medieval.
A REVANCHE DO CORPO
Descrição:
Enquanto a seção passada analisava as renúncias ao corpo, esta busca demonstrar
a resistência dele em ser renunciado.
“A Igreja
consegue, portanto, abafar o paganismo. Mas aquilo que os doutrinários cristãos
consideram ‘a anticivilização’ sobrevive e renasce. Os florescimentos populares
do corpo seguem, de fato, paralelos às flagelações e mortificações de certos
adeptos”. P. 59
“Disseminadas
sobretudo no meio rural [...] as práticas pagãs perduram e se enriquecem”. P.
59-60
O País de Cocanha
é o exemplo claro de utopia que revelava os desejos medievais. “Banquetes em
oposição ao corpo flagelado, desregramento contra ascese, as festas do Carnaval
burlesco, com essas danças, as caroles,
consideradas obscenas pelo clero, opõem-se à Quaresma dos jejuns. A civilização
do Ocidente medieval é, no nível do símbolo, o fruto da tensão entre Quaresma e
Carnaval”. P. 60
O Carnaval era o
tempo de “‘de entregar-se a última intemperança paganizante antes de penetrar
nos tempos de ascese’ fixados pela Igreja; isto é, antes da ‘entrada na triste
Quaresma’”. P. 61
- Serpente de pedra contra dragão de vime
Descrição: É
contada a história de São Marcelo, um santo parisiense para ilustrar como o
conflito entre o Carnaval e a Quaresma estava presente no imaginário popular
medieval.
- O trabalho entre castigo e criação
Descrição:
A tensão manifesta no trabalho manual, ora desprezado e hora valorizado.
“As duas palavras
que designam o trabalho são opus e labor. Opus (obra) é o trabalho criador, o vocabulário do Gênesis que
define o trabalho divino, o ato de criar o mundo e o homem à sua imagem”. P.64
“Labor (a pena), o labor, o trabalho laborioso, está do lado do erro e da
penitência”. P. 65
“Mas o tabu do
sexo, do sangue e do dinheiro separa os ofícios autorizados das profissões
ilícitas. Prostitutas, médicos e comerciantes pagarão a conta de condenação
dessas várias modalidades de corrupção”. P. 65
“Na alta Idade
Média, isto é, do século V ao XI, o trabalho é considerado uma penitência, uma consequência
do pecado original”. [...] De fato, a Regra
de São Bento fixa a prática do trabalho manual nos mosteiros, mas apenas
enquanto penitência, obediência à lei expiatória imposta ao homem quando da
queda do jardim no Éden”. P. 66
“A partir do
século VIII, os termos originários da palavra labor, como labores, que
designam mais os frutos do trabalho do que castigo, são os signos tangíveis de
uma valorização do trabalho agrícola e rural”. P. 66
“O trabalho
oscila, portanto, entre seu caráter nobre e o ignóbil”. P. 66-67
“A partir do
século XI e até o século XIII, ocorre uma revolução mental: o trabalho e
valorizado, promovido, justificado. [...] De um lado, os vagabundos são
expulsos ou condenados a trabalhos forçados. De outros, os ofícios vis ou ilícitos
[...] são reabilitados, [...]. Somente a prostituição, cúmulo da
concupiscência, e o jogral, arquétipo de uma prática gestual assimilada à
possessão demoníaca, permanecerão, em princípio, proibidos até no século XIII”.
P. 67
Na Renascença do
século XII, “o homem que trabalha é concebido antes como um cooperador do
divino, um “homem Deus”, do que como um pecador”. P. 68
“Mas a
resistência à valorização do trabalho manual se organiza. [...] O trabalho
intelectual é, assim, promovido e referendado, sobretudo no seio das
universidades”. P. 68-69
- A dádiva das lágrimas
Descrição:
As lágrimas como um ideal a ser buscado pelo cristianismo medieval.
“[...] uma fonte
de lágrimas, isto é, um sinal da graça divina”. P. 71
“as lágrimas
inscrevem-se na ‘renúncia à carne’ que ocorre durante a nova história ocidental
do corpo que se escreve na Idade Média”. P.71
“Esse ideal
ascético [...] torna-se pouco a pouco o modelo do monarquismo medieval”. P. 71
“Se a exortação a
chorar participa da renúncia à carne do cristianismo da Antiguidade tardia, é
antes de tudo porque o pranto se inscreve na economia dos líquidos dos corpos
que o asceta deve dominar”. P. 71
“A dádiva das
lágrimas tornar-se-á mesmo um critério de santidade a partir do século XI”. P.
73
“Entretanto, isso
não é verdade para a alta Idade Média – a despeito da regra de São Bento, que
prescreve os prantos penitenciais – que de modo algum se volta para a dádiva
das lágrimas”. P. 73
- Levar o riso a sério
Descrição:
Como o riso foi inicialmente reprimido,
e posteriormente, reabilitado no período medieval.
“‘O riso é
próprio do homem. Essa definição de Aristóteles [...] não será suficiente para
resgatar o riso do opróbio em que foi lançado a pelo menos até o século XII”.
P. 75
“O corpo não
escapa a uma visão do espaço divido entre o alto e o baixo, a cabeça e o
ventre. [...] A cabeça está do lado do espírito; o ventre do lado da carne.
Ora, o riso vem do ventre, isto é, de uma parte má do corpo. [...] o riso
caminha através do corpo desde suas partes baixas, passando do peito para a
boca. [...] o riso é uma ‘desonra da boca’”. P. 75-76
“O riso conduz às
ações baixas”. P. 76
“Mas, perto do
século XII, o riso será pouco a pouco reabilitado, porque mais controlado.
Tomás de Aquino segue os passos de seu mestre, Alberto Magno, que considerava
que o riso terrestre era uma prefiguração da felicidade paradisíaca, e atribuiu
um estatuto teológico positivo ao riso”. P. 78
“Mais do que
reprimi-lo, a Igreja, distanciando-se da pressão monástica, irá controlar o
riso. E separar o riso bom do mau, o divino do diabólico. O riso lícito, o riso
dos sábios, é o sorriso [...]”. p. 78
- Os sonhos sob vigilância
Descrição:
“Indissociavelmente
ligado ao corpo, o sonho vai ser colocado ao lado do Diabo pelo cristianismo
triunfante”. P. 82
“A diabolização
do sonho é uma resposta hábil a uma cultura pagã das interpretações das
verdades ocultas no além”. P. 82
“Com certeza, na
prática, o povo recorreu aos intérpretes, mágicos [...] a fim de dar sentido a
esse desregramento sensorial”. P. 83
“Condenação
moral, mas também distinção social. Pois a igualdade em face do sonho não
existe. Apenas uma elite tem o ‘direito’ de sonhar: os reis, os santos, depois,
a rigor, os monges. [...] Sonhos reais, mas também sonhos de santos, são
elevados ao nível divino. Mas, para o resto da humanidade, o sonho é
desaconselhado”. P. 83-84
“Uma reviravolta
decisiva se dá a partir do século XII, quando ocorre a democratização dos
sonhos”. P. 84
“A Idade Média renascente reata com o sonho, provavelmente sob a influência da cultura e da ciência antigas transmitidas pelos bizantinos, os judeus e os árabes”. P. 85

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